SOBRE O FILME

Adaptado da peça O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, o filme é a estreia de Tambellini como diretor, de clima claustrofóbico e cenário urbano de boates, bares, ruas e escritórios. O protagonista Arandir vê um homem ser atropelado no centro do Rio de Janeiro e, num gesto solidário, atende seu pedido final por um beijo na boca. Entre as testemunhas, um jornalista sem caráter, que se aproveita para sensacionalizar o fato: "não foi o primeiro beijo, não foi a primeira vez". Com o apoio de um delegado, igualmente sem escrúpulos, manipula a opinião pública insistindo que foi um crime passional entre velhos amantes. Em tempo, as dúvidas se infiltram até em sua esposa e a crise chega ao casamento. Revelando as contradições profundas do moralismo da época, a única que defende Arandir é sua jovem e sedutora cunhada, e seu principal inimigo é seu sogro – que ao final revela sustentar uma paixão secreta por Arandir.

CRÉDITOS REDUZIDOS

Produção: Glauro Couto, Domingos Paron
Roteiro: Flávio Tambellini, Glauro Couto e Geraldo Gabriel
Direção: Flávio Tambellini

Música: Moacir Santos
Som direto: Juarez Dagoberto
Departamento de som: Amaury Leenhardt


MÚSICAS IDENTIFICADAS NA TRILHA

"Coisa nº 2" - lançada no disco Coisas [1965]

"Coisa nº 8" - lançada no disco Coisas [1965]

"Paraíso" - lançada no disco Choros & Alegria [2005]

"Für Elise" [Música de L. Van Beethoven, arranjada por Santos]


DESCRIÇÃO E ANÁLISE DA TRILHA

A trilha de Moacir Santos para O Beijo pode ser considerada como um trabalho muito bem amarrado poeticamente, seguindo um caminho narrativo coerente e com intenso diálogo com a progressão da história. Alguns elementos musicais podem ser ouvidos como demarcadores de três grandes seções formais da trilha:

  • Sons eletrônicos

A sequência inicial do filme é acompanhada por uma série de sons manipulados eletronicamente, substituindo por completo em alguns trechos qualquer som e/ou ruído naturalista. Durante o trecho três dos personagens principais são apresentados: Arandir; Aprígio, o sogro e Mário Ribeiro, o jornalista. O desenrolar da ação leva até o atropelamento de um estranho na rua, seguido pelo beijo concedido por Arandir ao homem que agoniza no chão. A repulsa demonstrada pelo sogro parece inicialmente um sentimento homofóbico, mas se mostra ao longo do filme na verdade uma paixão proibida pelo seu genro.

Essa seção da trilha utiliza processamentos sonoros de filtragem, espacialização, delays e recursos de colagem. E sua resultante sonora é usada com duas funções bem específicas: 1. Paralelizar o som caótico da metrópole e 2. Gerar tensão e expectativa no espectador, pois seu uso acaba provocando certa "estranheza", que tem fim logo após o fatídico beijo, quando a trilha muda completamente sua sonoridade para um contexto mais tradicional.

  • Ostinato percussivo [tímpanos]

A porção central do filme contém diversas inserções de um ostinato rítmico persistente tocado em dois tímpanos separados por um intervalo de quarta justa e, por ser ouvida diversas vezes, essa inserção pode ser considerada como parte estrutural da organização da trilha. Emocional e psicologicamente os trechos se relacionam com a pressão que Selminha, mulher de Arandir, sofre de seu pai, de seus vizinhos, do jornalista e do delegado. A intensidade dramática das sequências permite se fazer uma alusão, de maneira bastante alegórica, ao próprio batimento cardíaco da personagem.

  • Trechos orquestrais

Por toda a segunda metade da produção, trechos orquestrais ganham força e se estabelecem como sonoridade principal. Essas inserções da trilha são utilizadas em diversos momentos e apresentam alguns temas bastante interessantes.

Um exemplo pode ser ouvido na sequência que mostra um comboio de carros na estrada mesclado com alguns planos do caixão, a caminho do enterro. A composição musical tem uma característica fúnebre: com andamento lento, pulsação bem marcada e com a harmonia modal predominantemente em cordas arcadas e piano.

Em outro caso, uma inserção orquestral é utilizada em dois momentos com função semelhante, quando Arandir foge das invasivas abordagens dos jornalistas. Musicalmente, a composição se molda ao suspense das sequências de forma muito coesa. Inicia-se um motivo ao piano permeado por trêmolos rítmicos na região extremo-grave do instrumento, gerando certa "confusão" nas frequências graves, tanto pela ágil subdivisão rítmica quanto pelos clusters formados em uma região com pouca definição de notas. Modal e com uma estrutura formal cíclica, elementos vão se sobrepondo gradualmente: piano, tímpano, cordas, trompa e oboé, formando uma complexa trama contrapontística.

Ainda em outro exemplo, um trecho com características dignas de um "concerto para piano", com piano solista acompanhado por cordas arcadas, insinua uma possível relação amorosa inesperada entre Arandir e Dália, sua cunhada. Essa inserção musical apresenta o perfil melódico da composição "Paraíso", gravada mais de quatro décadas depois no disco Choros & Alegria.

Permeando os três pilares descritos acima estão as inserções de "Für Elise", inseridas em diversos pontos desde o início até o fim do filme. É interessante notar como elas têm uma função estrutural de conectar as partes da trilha e dar mais fluência na concepção, pois o tema vai sofrendo transformações a partir da fricção com os outros elementos apresentados. O exemplo mais claro disso é o grande aumento na densidade do arranjo, que vai de um saxofone solo no início da trilha até um trecho orquestral grandioso na última inserção musical do filme. Ou seja, percebe-se que o tema se apropria da instrumentação recorrente na última parte da trilha, propiciando uma fusão do material temático com a instrumentação.

Além disso, algumas outras inserções interessantes são as composições diegéticas, quando os personagens também estão ouvindo e interagindo com elas. Por exemplo, na sequência que Mário Ribeiro está na praia e uma mulher tenta seduzi-lo vemos um pequeno rádio portátil ao lado deles. A seguir vemos um verdadeiro clichê cinematográfico, quando um dos personagens em cena gira o knob no rádio e o som imediatamente aumenta de volume, de forma a justificar ao espectador que aquela música não é ouvida somente por ele, mas também dentro da cena. No caso do trecho em questão, Moacir claramente imita a sonoridade do samba-jazz característico no final dos anos 1950 e início dos 1960. Dessa forma, a escuta do trecho adquire um caráter mais verossímil, induzindo o espectador a acreditar que a música realmente está vindo do rádio e, por consequência, localiza o período temporal da narrativa.

A outra inserção musical que está dentro da cena diegeticamente é a composição que veio a se tornar conhecida como "Coisa nº 8". Ela serve para caracterizar o ambiente boêmio do clube que Mário Ribeiro frequenta. Na sequência em questão vemos duas mulheres [Betty Faria e Glauce Rocha] conversando sobre como seduzi-lo para, quem sabe, ficarem tão em evidência quanto o fatídico beijo na sociedade carioca, por meio da influência do jornalista. A inserção musical apresenta uma sonoridade próxima à do jazz afro-cubano, com dois sopros dialogando entre si [sax barítono e trompete] acompanhados por guitarra, contrabaixo e atabaques.

Outra inserção musical notável é a "Coisa nº 2", com um arranjo já muito semelhante ao do disco Coisas. Ela funciona como um leitmotiv para mostrar o arrependimento do jornalista, pois todas as vezes que a ouvimos, o personagem se porta e age com incerteza de suas escolhas. O fato de ele ser o principal responsável por arruinar a vida de Arandir, em troca de leitores, não o está fazendo bem.

Por fim, outro aspecto muito importante da trilha de O Beijo é a limiar fronteira entre a trilha musical e o sound design. Ou seja, em alguns trechos do filme a música assume o papel dos ruídos e vice-versa. Por exemplo, no início do filme a sonoridade predominante é a de sons manipulados, representando a urbe. Nesse caso, o som musical substitui totalmente o som diegégico que supostamente deveria ser ouvido. Em outros casos, a percussão é usada para paralelizar o som naturalista, como quando um espelho é quebrado e ouvimos um solo de bateria bastante agressivo e valorizando a sonoridade metálica dos pratos, que faz uma alusão direta ao som do espelho se estilhaçando. Contudo, o uso da música como ruído nessa trilha não acontece de maneira tão óbvia.

Outra inserção especialmente marcante é quando o maquinário de impressão de jornais aparece em cena [junto com seu respectivo som/ruído] para mostrar a primeira notícia sensacionalista ser publicada. Depois disso, a imagem é gradualmente deixada de lado e em outras sequências apenas o som serve para informar ao espectador que outra notícia foi publicada, como um leitmotiv.

Visto isso, podemos perceber que os ruídos naturalistas geram a sensação de realidade, com informações complementares. E a música atua mais em um plano lúdico com a possibilidade de, por exemplo, localizar social, geográfica e/ou politicamente a trama. E o uso invertido desses parâmetros pode gerar novos tipos de compreensão e significação à narrativa fílmica.

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O Beijo  PERÍODO BRASILEIRO
Lançado comercialmente no Brasil em abril de 1965, dirigido por Flávio Tambellini